sábado, 13 de março de 2010

O casamento da coragem

Casado a um pouco mais de 12 anos, ou serão 13? Não me lembro, mas
realmente não importa, ela parou de comemorar a data do terceiro
pro quarto ano. Lembro que fiquei triste na época, sussurrei alguma
coisa, quase inaudível, sobre ela ter esquecido uma data tão especial.
Ela olhou pra mim na mesma hora, ficou me fitando por um minuto ou
dois e foi pro quarto.

Quando ela parou de trabalhar, ah, lembro bem desse dia...
Acho que foi no quinto ano do nosso casamento, ou sexto... Não sei,
realmente não me lembro. Paramos de contar no terceiro.
Sei que ela chegou em casa muito irritada, não, na realidade irritado
é quando o carro quebra, quando esquecemos de pagar o aluguel, ela
estava totalmente descontrolada, completamente transtornada, seu rosto se
contorcia em caretas de puro ódio, ficava passando a língua de um lado
pro outro dentro da boca semi-aberta, fui descobrir mais tarde que
ela estava afiando-a.

-Amor, o que aconteceu?
-VÁ À MERDA!!!
Fui pro quarto, não havia jeito.
-PRA ONDE VOCÊ VAI SEU IMPRESTÁVEL?
Voltei e fiquei em pé ao lado do sofá, calado, esperando, simplesmente
não havia outro jeito.
-ACREDITA QUE AQUELE ORDINÁRIO DO MEU CHEFE, ALIÁS, DO MEU EX-CHEFE
TEVE A OUSADIA DE ME DEMITIR? E NA FRENTE DO ESCRITÓRIO EM PESO.
AQUELE FILHO DE UMA V...
-Mas como? Ele não pode simplesmente lhe demitir assim.
-CLARO QUE PODE, ELE É O CHEFE, O DONO, METIDO A TODO PODEROSO, AQUELE
PORCO.
-Mas ainda não entendo, o que aconteceu pra ele lhe demitir na frente
de todos?
Ela em tom mais baixo:
-Discordamos em algumas idéias...
-Discordaram?
-É SEU IDIOTA! VAI FICAR REPETINDO TUDO O QUE EU FALO?
Voltei a velha estratégia de ficar plantando em pé esperando. Ela
tinha problemas para pensar no que falar quando estava daquele jeito,e
minha voz simplesmente não ajudava,todos aqueles anos de casamento
tinham me mostrado isso, 8 ou 9, não me lembro, paramos de comemorar
no terceiro.
-VAI QUERER OUVIR A HISTÓRIA OU NÃO?
-Claro!
Disse meio inseguro. Pensando hoje, no fundo o que eu queria
mesmo, era ir pro último andar do prédio e dizer ao piloto do meu
helicóptero para voar até aonde a gasolina da aeronave nos levasse.
Como não tinha heliporto no meu prédio, nem helicóptero nem piloto,
resignei-me.
-Estava fazendo o meu trabalho, como sempre. Fui a reunião marcada
a tarde com toda a diretoria e em determinado momento, o meu ex-chefe,
aquele desgraçado, teve a audácia de me pedir pra tirar umas cópias
de uns documentos que iriam ser vistos na tal reunião! Agora me diga
você. Como eu, uma contadora de renome, altamente reconhecida naquela
firma, trabalhando a anos ali, me rebaixaria a tirar fotocópias
como uma reles secretária?
Sabia que iria me arrepender se falasse naquela hora, nada de sextos
sentidos, é que estávamos casados a uns dez ou onze anos, não sei, não
lembro, paramos de contar no terceiro, mas falei, como um bom exemplar
covarde do sexo masculino que sou.
-Mas meu bem, uma simples xerox...
-VOCÊ TAMBÉM, SEU GRANDIOSÍSSIMO IMBECIL! Claro que eu percebi a tempo
que aquela era uma atitude machista e imoral, só serveria pra me
desmoralizar na frente de meus colegas de trabalho. Começei a gritar
com aquele infeliz que ele era um porco machista, e que o pai dele, o
diabo, tinha que ter orgulho dele. Vi o rosto dos meus colegas ficarem
espantados comigo, clamei pela compreensão deles e eles ficaram
horrorizados. Aqueles capachos me pagam...

Nessa altura, respirar para mim era algo difícil, perdeu um emprego que
ganhava muito bem, que oferecia plano de saúde e sociedade num clube,
onde por acaso, eu era frequentador semanal, ah o clube... Tudo por
causa de umas cópias idiotas!

Lembrei de quando somos crianças e sonhamos ser astronauta... Pois bem
queria que ela tivesse aquele sonho e que fosse real, nenhum lugar na
terra seria suficientemente longínquo para conviver com
aquela mulher. Talvez num nível estratosférico pudessemos manter um relacionamento saudável. Será que a NASA teria uma caixinha de sugestões?

Chega! Aquele era o fim, a gota d'água! Reuni toda aquela coragem
nunca usada que achava que tinha dentro de mim, ergui meu indicador
em direção a ela, tomando o cuidado de ficar a uma distância segura,
e falei.
Melhor, sussurrei, muito, mas muito baixo, enquanto abaixava rapidamente o dedo.
-Não acredito, que burrice!

Ela me lançou um olhar maligno e pontiagudo na mesma hora, acho que o
vizinho do outro apartamento ao lado do nosso deve ter sentido quando
aquele olhar furou a parede dele, não era possível que aquela mulher
tivesse ouvido o que eu falei, não pode ser, não é possível! Mas ouviu!
Maldita audição privilegiada.
Bufou e foi para o quarto, me xingou durante 3 meses inteiros.

Hoje é o nosso aniversário de quinze anos de casados, ou seriam
dezesseis? Não consigo me lembrar, vou perguntar a alguém que foi a
cerimônia, alguém deve ter uma data, um dos convites guardados, nós
paramos de comemorar no terceiro ano.

Agora sei que a amo porque ela é a única capaz de ouvir meus sussurros.

1 comentários:

Havah! disse...

Ai...!

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